Andar
Fui das crianças que mais
levaram quedas na vida. Uma queda para cada dia. Uma queda para cada hora.
Não lembro ao certo a idade em que comecei a andar. Se teria
acontecido antes de um ano ou depois. Suponho que depois. Bem depois. Ninguém
nunca tratou deste assunto comigo. O que só aumenta as minhas suspeitas de um
andar tardio e demente.
Fui um menino de joelhos dilacerados. A conta disso, vivi
acuado, aos cantos, a sombras dos outros meninos. Impossível um jogo de futebol
em que não fosse o último na escalação. Por piedade e misericórdia.
― O bicho não sabe nem andar.
― Não sabe nem respirar.
Tinha habilidades em fazer de conta que não ouvia. No jogo,
deus iria me iluminar e todos veriam minhas proezas.
Deus era bem distraído comigo. Haveria mais coisas a fazer no
mundo que ajustar-me as pernas.
Sempre me vi de calção acima dos joelhos para as feridas
secarem.
Em datas festivas eu usava calças que logo manchavam de
sangue e pus dos joelhos carcomidos. Uma imundície. Um constrangimento aos
adultos. Uma dor que eu disfarçava num riso amargo. Mais doía a vergonha.
Eu queria caminhar pelas ruas. Bater pernas. Subir e descer
calcadas de cimento. Equilibrar-me no paralelepípedo. Sair de casa dava-me a
sensação de civilizado, de ser gente!
Andei de mãos dadas por um bom tempo. Precaviam dos meus
tropeços e topadas. A preferência era sempre que eu ficasse em casa: sol
quente, chuva forte e lonjuras.
― Não solte de minha mão.
Eu queria ir para as lonjuras. Prometia não tropeçar.
Levantaria bem os pés, igual os soldados nas marchas de 7 de setembro. Algumas
vezes eu conseguia convencer os adultos. Convencia ou se apiedavam? O que sei é
que me punha a andar e não demorava a tropeçar. Estambocava a calça de
brim. Magoava as feridas. Um constrangimento que eu disfarçava num riso amargo.
Mais doía a vergonha.
Sucede que nunca chorei de uma queda. Fingi, algumas vezes,
que olhava formigas ou tinha achado algo no chão, quando na verdade havia
caído. Doía. O cimento ficava vermelho. O joelho ficava branco do rasgão para
em seguida banhar-se em sangue. Uma imundície. Um constrangimento.
― Olhe pra frente. Você
vive caindo porque só olha pro chão.
Como alguém conseguia andar olhando apenas para frente? As
outras crianças conseguiam. As outras crianças corriam. Flutuavam!
Na certa comiam verduras. Muitas verduras. Bebiam tonéis de
leite. Tinham pernas fortes. Lisinhas. Sem uma feridinha de nada.
Nas festas de fim de ano os primos não me chamavam para as
brincadeiras de pique-esconde.
― Ele nem anda.
(Imagem: Pinterest)