Um dia de rei
Para algumas pessoas a vida
é uma colher de papinha que vem em aviãozinho direto na boca, nhac. Mas,
para a maioria, a vida é um osso duro de roer. A minha e a sua deve ser esta
segunda, um osso miúdo, sem nacos de carne e entalado na garganta. A colher de
papinha passa por nós sem fazer escalas, ainda assim abrimos a boca, vá que
seja o nosso dia.
Fico olhando as pessoas
simples, as criaturas mais doloridas, que realmente levam uma vida difícil.
Pessoas que vivem no prego e na ferrugem. O frentista, por exemplo. Contava ele
que tinha vergonha de chegar em casa e não puder abraçar a filhinha que lhe vinha
correndo, papai, papai. Ele driblando a pequena, correndo ao banheiro. Só
depois do banho é que punha a filha no braço, mas aí a menina fazia birra,
virando a cara e pedindo os braços da mãe. Se eu abraçasse minha filha ela
ficaria fedendo a gasolina. E o frentista metia-se a tomar banho
esfregando bem as unhas pra tirar o cheiro de uma vida inflamável. Já
na hora de dormir, ele sonhava com outro trabalho, um que impregnasse menos
o lanhoso cheiro do seu dia. Procurava tocar a
esposa, ensaiava chegar com um carinho na orelha e da orelha adiante.
Reprimia-se. Julgava-se fedorento.
A esposa importunava. O
dinheiro não chegava nem para comprar misturas. Aquilo lá era vida, Deus
haveria de ver aquelas marteladas no dedo e penitência. Deus era
pai! E os dias passavam, as roupinhas da menina, chinelos,
brinquedos... Tudo passado de segunda mão. Não sobrava dinheiro para
uma coca-cola no almoço de domingo. A esposa sabia, claramente, que
não podia sonhar em bater bolos, pudins, purês ou qualquer merenda que pulasse
o feijão com arroz e ovos. E ensinava a menina colocar farinha na
comida, inchando o prato e a barriga. Aquilo não era vida, aquilo não era
emprego. Jogava na cara do frentista.
No dia seguinte estava lá o
homem com a bomba de gasolina na mão. Completa aí, fera! E ele
completava, enchendo tanques de landrover e hiluxs. Onde aquelas
pessoas conseguiam dinheiro pra matar a sede daqueles
mondrongos? Abraçariam suas filhas, dormiriam com as unhas pretas, comeriam
ovos, derramariam farinha no prato, tomariam uma coca-cola num almoço
de domingo?
(Imagem: Pinterest)