Kuki
Kuki apareceu pela
última vez num fim de tarde. Vestia uma camisa da seleção e empurrava um
carrinho de supermercado. Parava de porta em porta, pedindo alimentos e roupas
usadas. Zico, Sócrates, Júlio César... O Brasil inteiro havia perdido pênaltis
naquela Copa de 86. Kuki ganharia aquelas camisas. Mantos de mais uma derrota em diversos
números e tamanhos.
Kuki trazia uma
cachorrinha raceada com pastor alemão. Filha, comigo Filha, chega neguinha! E
lá vinha a filhote, pulando e cabeceando suas pernas.
— Ela morde?
— Morde, mas não morde. Safada só tem faro. Uma égua!
A avó Virgulina trazia
água num cantil de barro e uma caneca de alumínio. Kuki bebia. Largas goladas,
sons de engulhos e o pomo de adão galopando. Filha pulava e latia em desespero.
Kuki fez uma concha com a mão e despejou água. A cachorrinha bebeu
apressada, os olhos no dono, agradecida.
Filha fora achada
nos matos de Heliópolis. Três garotos acuaram-na, sacudindo as bombas que
sobraram da Copa de 86. Filha socando-se nas moitas a buscar refúgio, o
coraçãozinho espocando nas costelas. Kuki enxotou os meninos. Riquinhos filhas
da puta, bando de merdas sem pai, nem mãe. A senhora desculpe os palavrões.
Aqueles demônios iriam matar a bichinha.
Ali estava o São Francisco
das ruas de Garanhuns. Um sem teto a socorrer a cadelinha assustada e empestada
de carrapichos na pelugem.
— Foi amor a
primeira vista, num foi, nega?!
Kuki aparecia de
tempos em tempos e daquela vez a magreza havia acentuado. O avô Zevito espantou-se.
Um espigão! Comparou Kuki com Sócrates. Diabo que ache um pelo outro, —
resmungou a avó Virgulina, ainda com raiva do pênalti perdido pelo jogador.
O avô Zevito
estava certo na comparação. Kuki emagrecera em demasia, desleixava com a barba
e cabelo. Quem lhe pusesse uma camisa do Corinthians teria o seu Sócrates. Mas
o nosso Kuki era mais envelhecido, desgastado pelo tempo nas ruas. Sol e garoa
teriam lhe pesado muito nas costas. O avô Zevito pediu a Kuki que subisse a
camisa até o peito e constatamos o corpo encaveirado, pipocado de comichões.
Os avós socorreram
o desgraçado. Deram comida, ordenaram que tomasse banho e ofereceram um quarto no
quintal, onde se guardava ferramentas e tralhas. Viveria independente da casa,
sem dever satisfação. Teria água, luz e comida. Um endereço. Kuki meteu-se em
choro, coçou a cabeça, disse que era um bicho do mundo, parido e criado no
mato. No começo achei que tudo aquilo fosse orgulho e tive raiva de Kuki.
Dispensar a boa vontade dos avós para viver no oco do mundo, emagrecendo e
fedendo, fedendo e emagrecendo todos os dias da vida. Depois é que percebi a
grandeza de Kuki. Não queria incomodar os avós, ocupar um espaço com seus
cacarecos, seu cheiro e seu espírito.
Lá se foi Kuki
subindo a rua. Vestia uma camisa da seleção, empurrava um carrinho de
supermercado e parava de porta em porta. Filha rodopiava em suas pernas, agradecida
por ter um amigo. Foi a última vez que o vimos.