Sacrossanto
O
padre Gabriel fez uma pausa. Olhou para a testa de todos, onde fizera uma cruz
com borras de cinzas, depois subiu o pomo de adão e trouxe o microfone até a
boca:
—
São Pedro foi um mártir e o crucificaram de cabeça para baixo para que morresse
afogado com o próprio sangue.
Na
manhã seguinte a avó Virgulina acordou com um gosto de sangue na boca, cuspiu
na pia e fez gargarejo com leite de magnésia. A noite, acendeu uma fogueira
para a alma do santo crucificado de ponta cabeça.
Por
três vezes o padre Gabriel havia se benzido e por três vezes disse que São
Pedro havia negado Jesus. Peguei raiva do santo acovardado. Cristo sofrendo
humilhações, molhado em suor e sangue, carregando uma cruz de timborana,
agonizando os últimos instantes e São Pedro virando-lhe as costas.
—
Frouxo cagalhão, isso sim!
Pensei
alto e a avó Virgulina puxou-me na orelha. Passei o dia sem tevê e merenda.
Galego, o irmão do meio, comia e bebia a minha parte. Que morresse engasgado,
ele e o santo cagalhão. Moreno, o irmão mais velho, trazia pedaços de bolo
escondidos na blusa. Migalhas para o irmão que se revoltava contra o mártir da
avó.
—
Se fosse santo, teria derrubado os soldados, libertado Cristo. Amigo da onça. —
Resmunguei.
Moreno
olhou em volta, receoso dos olhos da avó Virgulina. Cochichou que os santos não
eram tão poderosos e só tinham poder depois que morriam, não podendo entrar em
guerra de ninguém. Só ajudavam as pessoas para se casarem, passarem de ano e conseguirem
empregos. Em troca exigiriam que as pessoas rasgassem os joelhos no chão,
rezassem e levassem ramos de alecrim acompanhando procissões. As demais
questões ficavam com os homens e Deus.
A
fogueira da avó Virgulina estalava a madeira seca. Bolinhas de fogo subiam e
apagavam. Sacudi umas pedras e as bolinhas saltaram aos milhares. Um empesto
subindo aos seus e depois apagando.
—
Sou o Deus criador de vaga-lumes, centenas, milhares, milhões!
A
avó Virgulina puxou-me na orelha. Estava profanando a fogueiro do santo.
Heresias, blasfêmias. Um desrespeito! Voltei aos castigos sem tevê e comidas de
milho. Galego metia cangicas, pés-de-moleques e pomonhas na boca. Fartava-se
comendo a minha parte. Que morresse engasgado, ele e o santo. Moreno estava
longe, entretido com a vizinha vestida de matuta. Mais tarde os dois iriam
desaparecer e a rua toda falaria que foram perder o cabaço.
Escutei
que as tias chegavam, traziam comida e perguntavam por mim. Por um instante
virei assunto. Alguma tia se apiedaria de mim e repreenderia a severidade da
avó Virgulina. Que nada! Logo o cabaço de Moreno viraria assunto. As tias
clamariam a avó que não castigasse a volúpia do neto fujão. Se o pai de
Gracinha fosse brabo, Moreno morreria cortado de faca. Uma imprudência sem
tamanho. Mas, o bebão não aguentava um sopro de vento e a fama era que ele é
quem havia descabaçado a filha.
Uma
tia abriria a porta do quarto, acenderia a luz e chamaria pelo sobrinho que
atentava contra os santos da igreja católica. Fingi que estava dormindo.
Evitaria vergonhas e explicações. “Não concordo com São Pedro, sua covardia e
sua santidade.” As tias colocariam pilhas na avó Virgulina: esse menino é o
diferentão, a senhora corte essas maluquices enquanto pode com ele... E a avó aumentaria
o castigo confinando-me num quarto escuro para sempre. Melhor fingir que
dormia. Pois sim.
A
tia havia se apiedado de mim. Trouxe um prato e deixou no pé da cama. Passou a
mão em minha testa — a mesma testa que o padre Gabriel havia feito uma cruz de
cinza.
—
Coma tudo e esqueça esse santo de merda!