A bruxa das injeções
Uma moça entrou sorrindo na sala, “essa garota linda vai
tomar vacina hoje?”. Era a enfermeira. Jovem, bonita e alegre. Alguma coisa
estava errada. Onde estaria a bruxa velha com os cabelos desgrenhados e verruga
na ponta do nariz? Onde estaria a cara de enfado e a roupa respingada de
sangue? Poderia ser uma estagiária e aquela beleza toda estaria disfarçando um
ser demoníaco. Lobo em pele de cordeiro. Seria inexperiente e estaria na sua
primeira semana de enfiar agulhas pontudas em criancinhas inocentes. Teria acordado
naquele dia com um único pensamento: furar todas as criancinhas do mundo. Uma,
duas, três vezes. E a minha filhinha de dois meses seria a sua bonequinha de
espetar agulhas. Um vodu de carne e osso.
A enfermeira ficou de costas para mim e trocou umas duas
palavras com a minha esposa. Que teria dito? Depois alisou os cabelos de minha
filha, “que amorzinho que ela é”. Minha filha parece ter um geniozinho difícil,
já se percebe a rebeldia em esticar o corpo, estapear a mamadeira e nos meter
beliscões, mas das palavras da enfermeira em diante, ela ficou um “amorzinho”. Que
diabo estava acontecendo?
A enfermeira virou-se pra mim. Seria agora que ela me
transformaria em sapo ou lesma. “O senhor pode entregar o cartão de vacina?” — Antigamente
o cartão de vacina era um pedacinho de papel cheio de carimbos e datas. Trazia
ainda uma foto grampeada que logo era salpicada pela ferrugem. Exibir o maior
número de carimbos fazia-nos levantas o queixo e estofar o peito. Valentões,
sim senhor! — A enfermeira ficou rabiscando a cartão, virando páginas e fui ao
encontro da esposa que me chamava com um gesto de cabeça. “Pode deixar que eu
seguro ela, precisa você segurar não”. O que era isso agora, teria a enfermeira
enfeitiçado minha esposa? Fazia poucos segundos que ela estava apavorada e
agora arrumara a coragem de enfrentar o fogo cruzado. “Não, eu seguro, pode
deixar”, disse eu, abraçando minha condição de pai. “Pode deixar que eu
seguro”, decretou a esposa. Estava sob feitiço, pobre criatura. Nossa filha a
beira do abate e ela entregando-a de bandeja.
“Vamos então a primeira dose, essa é molezinha”, disse a
bruxa trazendo a bisnaga para a boca de minha filhinha. “Acorda, neném, acorda”,
continuou a bruxa, docemente. “Hoje ela tá muito preguiçosa”, disse a esposa.
“Eita, que olhão bonito”, disse a bruxa. “Acordou mamãe!?” disse a esposa. A
bruxa pegou a segunda dose, seria a primeira das três injeções. Levantou a
seringa, deu petelecos e esguichou um pouco do líquido para tirar o ar.
Dizem que se o ar entrar na seringa a pessoa pode aleijar e tudo. Se isso
acontecesse eu a queimaria viva ali mesmo com ou sem apoio da Santa
Inquisição.
Minha esposa já
havia baixado a roupinha da nossa bebê. “Deus do céu, que coxa mais gostosa”,
disse a bruxa. “Dá última vez que a pesei ela tava com cinco quilos e
quinhentos”, disse a esposa. Ela é bem crescida pra ter apenas dois meses”,
disse a bruxa. Estavam amigas, era isso? Agora o mundo poderia acabar, mas o
papo deveria ficar em dias. “Segure a perninha pra ela não se mexer”, disse a
bruxa. “Tá certo!”, disse a esposa, mas agora o “Tá certo!” saiu baixo,
arrastado, tremulo. Por fim a esposa estava se livrando do feitiço, tornando em
si, mas já era tarde demais.
(Continua)