Minha
avó travava os dentes quando sentia algum medo ou quando um perigo estava pra
chegar. Se alguém batesse palmas tarde da noite ela ligava as antenas e
começava uma oração entre os dentes serrados. A oração parecia dita em outro
idioma e às vezes parecia xingamento para um filho de Deus que havia acertado
bater palmas tão tarde da noite. Era um misto de oração pra afastar notícia de
alguma morte na família e palavrões pra quem ousava tirar o sono da casa. E era
possível ouvir o “Santa Maria, mãe de Deus” e em seguida o “Diabo é quem bate
na casa de um cristão essa hora, rogai por nós pecadores, agora e na hora de
nossa morte, amém”.
O
problema todo era voltar a dormir. Por algum motivo ela dizia que, uma vez
acordada no meio da noite, a pessoa jamais deveria consultar as horas. Quem
acordasse e soubesses das horas ficaria o resto do tempo sem conseguir dormir. Minha
avó sempre olhava as horas. Não aguentava de ansiedade ou seja lá o que fosse.
Imagino que pensasse ser mesmo hora acordar e ir varrer o quintal, aguar as plantas,
partir as frutas pros cágados e fazer um café vigoroso que logo incensaria a
casa.
O
problema era voltar a dormir no meio da noite.
Já
o meu avô dormia tranquilo. Provavelmente sonhava que vencia no jogo de dominó.
Estava aposentado e passava as tarde jogando com outros velhinhos de mãos de
gravetos e tosses incontroláveis. Aquelas gargantas um dia iriam de estourar,
ainda mais porque todos eles fumavam e meu avô fumava mais que todos. Meu avô
poderia facilmente ser o campeão nacional de fumar cigarros. Na estante de
nossa casa havia um arsenal de carteiras de cigarros e eu pegava aquelas embalagens,
dobrava-as e fazia a cédula de um dinheiro que me dava muito prestigio entre os
meninos da rua. Uma nuvem de fumaça encobria meu avô e os outros velhinhos e
era preciso abrir as portas e janelas pra fumaça escapar. De fora seria
possível alguém pensar que a casa estivesse pegando fogo.
Minha
avó embolava na cama, remexia, levantava, tomava água e voltava a deitar e
remexer na cama. Buscava recuperar um sono que fora atropelado num bater de
palmas que viera de algum purgatório lhe atanazar. Meu avô dormia fundo,
indiferente a penúria que minha avó passava, e era bem verdade que a velha lhe
dava umas cotoveladas. Um desejo que ele acordasse e compartilhasse da mesma
insônia. O que mais a intrigava era um fio de riso na boca de meu avô. Como se
ele estivesse acordado e fingisse dormir. O velho era bem esperto nessas horas.
“Corra
dormir, menino”, dizia minha avó, “isso é lá hora de acordar, só pra gente
besta mesmo, corra dormir”. E eu voltava pra cama, sonolento, remelando e
tentando entender o acontecido. Um bater de palmas havia acordado a casa, uma
conversa rápida de minha avó com algum fantasma da noite. Pedaços de uma fala
indecifrável. Se eu olhasse as horas perderia o sono, viraria um zumbi igual minha
avó que, não conseguindo dormir, acendia uma vela no oratório, ajoelhava e
fazia uma reza baixinha, soprada, “assim na terra como no céu, o pão nosso de
cada dia nos daí hoje...” e a reza fazia a chama tremelicar e a minha avó varava
a madrugada conversando com os santos.
De
manhãzinha estava ela com os olhos inchados. Falava com o meu avô de alguma
coisa que eu não poderia saber. Talvez por eu ser curioso e dar com a língua
nos dentes, talvez porque eles tinham segredos de gente adulta e eu jamais
entenderia. Mas uma coisa ou outra eu fui pescando. Tinha algo com uma irmã de
minha avó que havia entrado no hospital com a boca torta e um pedaço do corpo
parado. Mas tarde um parente chegou em nossa casa dizendo que a irmã de minha
avó teria descansando daquela luta. Minha avó correu no oratório, acenderia
velas, mas havia dado uma tontura e as mãos tremiam muito.