O filho perdido
Dona Aparecida criava nove filhos e havia perdido um no
meio do mundo. Tudo por conta de uma mudança que fizera as pressas. Fazia um
mês que as chuvas encharcavam o solo e a sua casinha começou a estalar: primeiro
as paredes racharam desenhando aqueles mapas, depois o chão começou a levantar,
desenterrando sapos e cobras. Foi a conta. Diabo que ficasse mais algum dia
naquele barraco. Dona Aparecida pegou os meninos e as tralhas todas, pôs em
cima de um caminhão e fincou pé. Morou alguns anos no Magano, na Cohab e por último
pousou Boa Vista. Era nossa vizinha, mãe de Abimael e Gracinha, os dois únicos
filhos com quem eu tinha contato. Os outros filhos ou eram mais velhos ou eram
mais novos. Os mais velhos queriam bater na gente, uma raiva da vida que eles
tinham ou coisa assim. Os mais novos viviam remelando e fediam pra valer. De
modo que Abimael e Gracinha eram os únicos com quem se podiam viver dentro de
uma normalidade. Se bem que Gracinha até fedia um pouco, mas a gente achava ela
bem bonita e aturávamos.
Eu sentia uma pena danada de Dona Aparecida. Criava
sozinha os nove filhos e para isso topava qualquer serviço que aparecesse. Até
serviço de homem ela fazia. Dona Aparecida tinha a força de um boi ou coisa
assim. Carregava lavagens para os porcos de Dona Menininha, lavava roupa e
depois passava tudo com ferro de brasa — ela soprando o ferro pro tição não
apagar —, capinava os matos da Igreja Batista do Planalto, lavava a kombi do
relojueiro Cotó, carregava água em tonéis, matava galinha de caipira, barrões
barbudos e tudo o que mais aparecesse. Aquela mulher valia por um exército. “O
importante é trabalhar e ganhar dinheiro”, ela dizia. Mas a mulher ia se
acabando dia após dia. Abimael dizia que a noite era preciso tapar os ouvidos de
tantos gemidos que ela dava. Ele e os irmãos até queriam ajudar no trabalho,
mas eles quebravam muita coisa alheia ou atrasavam os afazeres e tempo era
dinheiro. O pesado mesmo ficava com Dona Aparecida. E cada dia que passava a
gente notava que ela perdia um pedaço pelo caminho e chegaria o dia que ela
sumiria.
Um dia Dona Aparecida bateu muito em Gracinha e foi
preciso os vizinhos acudirem para não acontecer algo pior. Minha amiga ficou
uma semana parecendo uma boneca pisoteada com os olhos estufados e roxos. Acho
que ela não enxergava ninguém, mas fazia questão de aparecer na porta pra que
visem o seu estado e tivessem pena. E tudo porque ela havia dado um passeio de
domingo e ficou sem ninguém saber dela. Os irmãos procurando por toda parte e
Dona Aparecida a ponto de perder o juízo, dizendo matar quem fizesse maldade ao
seu anjinho. No dia seguinte um caminhão parava na porta de Dona Aparecida. Um
homem havia encontrado Gracinha, mas ela estava mais ou menos sem roupa e toda
desgrenhada com umas mordidas no pescoço. Parecia ter sido atacada por um
lobisomem. E por isso mesmo Dona Aparecida bateu nela, pra que tivesse medo de
sair de novo e ser mordida no pescoço. Mordida ou chupada, coisa assim.
Abimael também já havia levados uns cacetes da mãe. Tudo
por ter achado um dinheiro que não era dele e também não era de ninguém ou
coisa assim. Mas um homem apareceu com a polícia e disse que o dinheiro era
dele e a polícia quis levar Abimael, acho que pra mostrar onde era que ele
tinha achado todo aquele dinheiro. Mas Dona Aparecida disse que o filho dela
nunca mais iria achar o dinheiro suado dos outros e o policial deu um tapa na
cara de Abimael que fez o chão estremecer e o dono do dinheiro pôs o dedo na
cara de Dona Aparecida e depois cuspiu na cara de Abimael.
Eu já ia esquecendo de falar do filho sumido de Dona
Aparecida. Era um menino ainda de colo e que naquela mudança as pressas parecia
ter caído do caminhão e embolado ninguém sabe para onde. Dona Aparecida achava
que o paradeiro de embolar ninguém sabe pra onde, era melhor que ser passado
por cima pelas rodas do caminhão. Mas dizia também que ouviu um leve estalo
fofo e uma sacolejada do caminhão bem na hora da mudança. E aquilo poderia ser
só uma impressão dela de que fosse o seu menino. E ela nunca vivia em paz ou
vivia com uma pulga atrás da orelha ou coisa assim.