Crônica de binóculos e bugs
A ambulância havia chegado. Muita gente em volta.
Que é que tinha parar dois minutinhos para ver o acidentado? Ao menos haveria
uma história pra contar. Tipo, “Quem soube do acidentado de hoje?”, e ninguém
saberia, e você se sentiria importante, sentiria que as pessoas precisariam
saber daquele acidentado, aí você, todo dono do mundo, diria, “Coisa mais
triste, o corpo lá, ensanguentado, agonizando. Aposto que não escapou.” Blá,blá,
blá. Comigo foi diferente. Comigo foi assim: um garotinho olhou minha cara de
curiosidade, disse, “Foi um bêbado. Ele caiu, partiu a testa e o cérebro pulou
fora. A roupa toda melada de sangue e ele chorando sem saber voltar pra casa.”
Olho pro garoto. Deve ter uns quatro, cinco anos, não mais. “Vai morrer, o
pobre.” O garoto coloca as mãos nos olhos, fazendo um binóculo. “Talvez, não”,
eu digo. “Se colocarem um cérebro novo ele se recupera.” O garoto me olha,
franze a testa. Prossigo, “Vi no Discovery! Eles tiram o cérebro de uma caixa térmica,
sai fumaça e tudo, depois serram o crânio, instalam o cérebro”, o garoto me
interrompe, “Mas, e se a pessoa ficar bugada, tipo: gaguejando ou andando pra trás?” e o
garoto aponta o binóculo pra mim. “Eles tomam o maior cuidado com isso, não há
perigo.” O garoto tira o binóculo, pergunta com a maior seriedade, “Como que
eles colocam as lembranças dentro do novo cérebro?” De novo aponta o binóculo
para mim.