Crônica de andar com a filhinha num dia de sol
Fez sol e fui esticar as pernas com a minha filha. Um sol
preguiçoso, enfadado, mas ainda assim claro, morno e convidativo. Dois meses e
meio enfurnados num bunker abafado e, nos últimos dias, úmido e empestado de
mofo. Um belo dia o bunker inventou de pingar. Uma desgraça. Pusemos um balde e
sofremos com o toc, toc dos bagos d'água. Fez sol. Era preciso esticar as
pernas pro além do quarto-pra-sala e da sala-pra-cozinha e assim até desgastar
a cerâmica.
Subimos uma rua de terra e foi preciso desviar das lamas. Em trechos secos coloquei minha filha no chão.
— Óia, pai! Óia, auau! Chôchôchô!
O som de tanger serve também pra chamar. Nesse ponto ela é prática. No futuro ela aprenderá as formalidades da língua. Agora ela prefere ser prática. Por exemplo, ela poderia usar o "chegue, chegue", mas reservou esse termo aos pais quando suplica por colo.
— Óia, pai...
Tive medo do cachorro e a coloquei nos braços. Se viesse raivoso lhe chutaria as fuças. Era manso. Abanou o rabo, se chegou. Estalei os dedos e a minha pequena fez
o mesmo gesto em câmera lenta. Estudava o movimento e o estalo. Certamente estava intrigada dos movimentos não funcionarem
com ela.
— Ama criança! Não pode ver uma, corre atrás. Disse a dona, tranquilizando.
Chegamos num terreno mais seco e a deixei. Liberdade! Andou, correu, caiu. Feliz igual um pinto no lixo, sim senhor! Franziu a testa do sol incandescente, beliscou o mato, pegou britas e as sacudiu. Buscou gravetos e riscou o chão.
— Uau! Óia pai!
Rabiscou todo o chão. Traços rupestres. Garatujas. Garranchos. De vez em quando saia a letra 'v' ou talvez 'y'. Um dia ela fará o 'o' e o ainda mais difícil 'b', maiúsculo e minúsculo. Escreverá redações, tratados, romances. Quem sabe uma epopeia. Talvez não escreva, talvez pinte. Talvez trabalhe com tatuagens, talvez corrija provas — e lhe desejo sorte —, talvez crie
cachorros e estale os dedos.